Em 2015, o Festivalando publicou um texto reforçando a necessidade de os festivais passarem a distribuir água gratuita para o público. Era a sistematização de uma bandeira da marca desde o início, que ao longo de seu primeiro ano pipocava aqui e ali nas publicações, e que seguiu sendo reforçada nos anos que se seguiriam.
No sábado 18 de novembro de 2023, o texto foi um dos mais lidos do site. O motivo foi o pior possível: o desdobramento da morte da estudante Ana Clara Benevides durante o show de Taylor Swift no Rio de Janeiro, que levou à edição de uma portaria do Ministério da Justiça tornando obrigatória a permissão para o público levar água em shows e festivais e a distribuição de água gratuita pelas empresas organizadoras. Entre um ponto e outro, muita coisa aconteceu (ou deixou de acontecer) quando se trata de hidratação nos festivais brasileiros.
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PARTE I: Episódios envolvendo água e festivais no Brasil
Não é de hoje que o público reclama do modo como é feita a oferta de água nos festivais brasileiros. Seja a cobrança de preços abusivos ou a proibição de copos e garrafas de água levadas pelo público para os eventos, há muitos episódios ao longo dos anos para lembrar.
Como os R$ 10 cobrados por um copo de água no Monsters of Rock em Porto Alegre, em 2015, relatado por um leitor no comentário da análise do Sweden Rock. Ou os R$ 8 cobrados pelo Ultra Rio em 2016, registrada na análise da estrutura do festival feita pelo Festivalando à época. Outros episódios incluem o aumento de R$ 2 no valor da água de um ano pro outro pelo Maximus Festival, de 2016 para 2017, e a cobrança diferenciada de preços praticada pelo Popload 2018 (a pista comum pagava mais caro que a pista premium).
Em 2018, o Lollapalooza chegou a ser autuado pelo Procon por proibir a entrada de copos de água. Mais recentemente, já agora em 2023, houve relatos de fãs segundo os quais não havia água disponível em alguns pontos do The Town no segundo dia do festival no começo da tarde. E também a venda de água a R$ 9 praticada pelo Tomorrowland Brasil.
Um caso à parte
O Lollapalooza Brasil é um caso à parte nesse cenário. Enquanto Lolla Chile e Lolla Argentina oferecem água de graça desde a edição inaugural (2011 e 2014, respectivamente), a versão brasileira do festival só foi oferecer água gratuita em 2019.
Mesmo assim, retornou da pandemia em 2022 sem fazer o mesmo. A ação só foi retomada em 2023, mediante patrocínio, assim como em 2019. Vale lembrar que o Electric Daisy Carnival Brasil, realizado em 2015, também em Interlagos e também organizado pela T4F, teve água gratuita.
PARTE II: A lei
A portaria editada no dia 18 de novembro pelo Ministério da Justiça para cumprimento imediato e obrigatório garante a entrada de garrafas de água para uso pessoal em “shows, festivais e quaisquer eventos especialmente expostos ao calor”. Também estabelece que organizadores devem “disponibilizar bebedouros ou realizar a distribuição de embalagens com água adequada para consumo”.
Ainda determina que os órgãos de defesa do consumidor deverão “realizar o acompanhamento dos preços da água mineral comercializada, a fim de coibir aumento abusivo de preços e ônus excessivo ao consumidor”.
Resta agora que a medida se consolide e não seja descumprida ou derrubada pelo próprio poder público, como já aconteceu com leis semelhantes envolvendo água e estabelecimentos comerciais.
Por exemplo, uma lei de 2012 de Belo Horizonte que obrigava a instalação de bebedouros em casas noturnas da cidade foi considerada inconstitucional pela Justiça em 2014 depois de uma ação da Associação de Bares e Restaurantes de MG. Em 2022, a lei foi derrubada de vez ao ser revogada pela Câmara.
Em São Paulo, uma lei municipal aprovada em 2008 e regulamentada em 2010 que determinava a instalação de bebedouro em casas noturnas da cidade ainda não era cumprida três anos após sua aprovação.
PARTE III: Considerações finais
Uma das missões do Festivalando desde sempre é chamar atenção para os problemas que o fã de festival enfrenta e deixar claro que festival não é só um monte de show acontecendo ao mesmo tempo; é também um serviço prestado por empresas que têm suas responsabilidades. O Festivalômetro está aí, nos relatos de fãs e nas análises do site, para verbalizar essa missão.
Mas essa discussão, infelizmente, ainda fica restrita à bolha de quem acompanha de perto esses eventos. Quando sai da bolha, a questão é tratada sob o viés equivocado do “perrengue”, até que chega-se a um caso extremo como a morte ocorrida no show de Taylor Swift. Dito isso, vale reforçar outros pontos adjacentes à questão tratada aqui:
1. Água não é o único problema
Tome como exemplo o The Town. O festival tinha água de graça, reproduzindo muito bem aqui o Rock in Rio, que há muitos anos tem bebedouros no festival.
Mas quem esteve lá sabe que não adianta ter água de graça se ninguém consegue sair do lugar para ir no bebedouro porque fizeram um mau uso do espaço, comprometendo a circulação e a segurança das pessoas.
O Roskilde Festival, o maior e mais antigo festival da Dinamarca, tem uma dinâmica interessante para controlar a multidão que o Festivalando presenciou na cobertura que fez em 2014. A parte da frente do palco principal é separada por grades para controlar a entrada do público, que é feita show por show.
Funciona assim: para cada show do dia no palco principal, é formada uma fila nas laterais. Quando o show do artista A começa, somente quem está nessa fila pode entrar a princípio. Um sinal verde/vermelho indica ao longo do show se o espaço tem capacidade para mais gente entrar. Quando o show do artista A termina, TODO MUNDO tem que evacuar a área para que entrem os fãs que estão na fila do artista B, e assim por diante.
Importante lembrar que o Roskilde só tomou essas medidas depois de uma tragédia. Em 2000, nove pessoas morreram pisoteadas e 20 ficaram feridas durante um show do Pearl Jam. Mesmo assim, até que o festival assumisse maior responsabilidade sobre a segurança das pessoas, foram muitas decisões equivocadas e processos na Justiça abertos pelos familiares das vítimas.
2. O setor de eventos tem muitos problemas para resolver
Não podemos esquecer que um ano que está terminando com a morte de uma fã no show da Taylor Swift foi o mesmo ano que começou com flagrantes de trabalho escravo no Lollapalooza, depois de denúncias seguidas em anos anteriores.
Fora os problemas que vão contra direitos trabalhistas e direitos humanos, e os que afetam a segurança e o bem-estar do público, há também muitas irregularidades envolvendo direitos do consumidor. Procure no Google “procon autua show” ou “procon autua festival” para ter uma amostra desse cenário.
3. Festival/show NÃO é perrengue, reclamação de fã NÃO é mimimi
O fã que vai ver seu ídolo ao vivo é tido como “o adolescente irresponsável”, “o adulto que não cresce”, “a pessoa louca que gasta rios de dinheiro pra ficar numa multidão”.
Na verdade, é um cidadão e consumidor que ajuda a movimentar um setor que responde por 4% do PIB, segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Eventos.
Menosprezar as demandas desses fãs e deixar os responsáveis por eventos passarem ilesos custou uma vida. Vamos ficar vigilantes para que não custem outras mais.
Este texto foi adaptado de uma thread publicada pelo Fedtivalando no Twitter no dia 18 de novembro de 2023
Crédito da imagem em destaque: Mat Napo/Unsplash