O Lollapalooza Brasil terminou neste domingo (26) uma edição inevitavelmente histórica, porém não pelos motivos esperados a princípio. Era para ser a celebração da 10ª edição do festival no Brasil.

Mas inconsistências na pré-venda, que renderam notificação do Procon, e cancelamentos de atrações importantes até a última hora formaram progressivamente uma onda de problemas que teve como pico o resgate de cinco trabalhadores em condições análogas à escravidão que atuavam na preparação do festival. Motivos de sobra para o público repensar sua relação com o festival.

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O Lollapalooza Brasil foi palco de trabalho análogo à escravidão

A Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo resgatou cinco homens que trabalhavam informalmente para a Yellow Stripe, empresa terceirizada pela T4F, organizadora do Lollapalooza.

Eles faziam o carregamento de bebidas em jornadas de 12 horas, não podiam deixar o Autódromo de Interlagos e dormiam sobre papelões.

Ambas as empresas tiveram que ressarcir os trabalhadores por salários devidos, verbas rescisórias e horas extras, e podem vir a ter que pagar novos valores, caso o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) faça um pedido de verbas indenizatórias.

Não é um caso isolado na história do Lolla

Esta foi a primeira vez que a T4F, organizadora do Lollapalooza, foi formalmente responsabilizada por infrações de direitos trabalhistas, mas é a quarta vez que vêm a público casos do tipo.

Em 2018, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo, denunciou que moradores em situação de rua eram contratados para trabalhar na montagem do festival e recebiam de R$ 40 a R$ 50 por jornadas de 10 a 12 horas diárias. O caso foi divulgado pelo Intercept Brasil.

Em 2019, a mesma situação – trabalhadores atuando irregularmente na montagem do festival por R$ 50 em troca de jornadas de 12 horas – foi relatada pela Folha de S. Paulo e também pelo padre Júlio Lancelotti.

Em 2022, novamente o padre Júlio Lancelotti denunciou em suas redes sociais a contratação irregular de moradores em situação de rua para a montagem do festival.

Depois de o padre fazer uma denúncia ao Ministério do Trabalho ainda em 2018, finalmente, agora em 2023, as autoridades fizeram o flagrante do Lollapalooza.

Não acontece só com o Lolla

Em entrevista ao UOL, Rafael Brisque Neiva, auditor fiscal do Trabalho em São Paulo que atuou no caso do flagrante do Lollapalooza, afirmou que o setor de eventos tem muitas irregularidades. Dentre elas, informalidade, fraude em contratos de trabalho e jornada de trabalho irregular.

Ele citou os shows do Coldplay e a Fórmula 1 como exemplo. A reportagem de 2018 do The Intercept menciona casos no show de Katy Perry e na Virada Cultural.

O Rock in Rio também já esteve por três vezes envolvido em denúncias do tipo

Em 2013, uma investigação do Ministério do Trabalho resgatou 93 trabalhadores em condições análogas à escravidão na Cidade do Rock. Elas trabalhavam como vendedoras ambulantes do Bob’s. Para realizar o trabalho, tiveram que contrair dívidas e ficavam alojadas em situações degradantes.

Em 2015, outros 17 trabalhadores ambulantes que vendiam batata-frita da empresa Batata no Cone dentro do Rock in Rio também foram resgatados pelo MTE em situações semelhantes. Eles também tiveram que se endividar para conseguir o emprego, ficavam alojados em condições precárias e não tinham limite de jornada.

Em 2019, auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro encontraram trabalhadores dormindo embaixo do palco Sunset, dividindo espaço com quadros elétricos e fiação. Eles trabalhavam carregando equipamentos e instrumentos musicais.

A população prestou atenção no que aconteceu no Lolla

O caso do Lollapalooza não fugiu da atenção das pessoas. Junto com comentários no Twitter e no Instagram do festival, as buscas no Google também foram tomadas pelo assunto.

Dados do Google Trends mostram que as pesquisas e os assuntos relacionados a buscas feitas sobre o Lollapalooza nos últimos sete dias no Brasil envolvem as notícias do flagrante de trabalho análogo à escravidão.

trabalho escravo no lollapalooza

O poder público está agindo

Na mesma entrevista ao UOL citada acima, o auditor fiscal Rafael Brisque Neiva afirmou que a fiscalização do Lollapalooza ocorre há seis meses, e seguiu nos dias do festival.

Tanto foi que, no segundo dia de festival, após a revelação do resgate de trabalhadores, a fiscalização detectou a violação dos direitos trabalhistas de cerca de 800 funcionários dos bares do Lolla.

As irregularidades eram praticadas pela empresa que substituiu a terceirizada envolvida no flagrante do resgate de trabalhadores. Os funcionários dos bares cumpriam jornadas de 12 horas sem pagamento de hora extra, sofreram descontos do valor do exame médico admissional e não recebiam vale-transporte.

As representantes da população estão agindo

Diante da revelação das infrações do Lollapalooza, a bancada Feminista do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo ajuizou uma medida cautelar pedindo que a Justiça proíba a T4F de realizar novas edições do Lollapalooza no Brasil.

Já a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) fez uma denúncia contra a T4F à Comissão de Valores Mobiliários e à B3, sustentando que a empresa atentou contra as normativas da CVM.

E o que nós, frequentadores do festival, vamos fazer a partir de agora?

O que vamos fazer se o Lollapalooza não se pronunciar e não mudar suas práticas? Enquanto a T4F ao menos emitiu uma nota ao ser interpelada pela imprensa, o festival não se pronunciou em nenhum momento, mesmo sendo questionado inúmeras vezes nos últimos dias nos comentários de postagens no Twitter e no Instagram.

Não é de hoje que o Lolla dá motivos para questionar a relação fã-festival

Considerando somente a esfera das relações de consumo, o Lolla já deu muitos motivos até aqui para o público questionar sua relação com o festival.

As notificações do Procon se sucedem ano após ano, por diferentes razões: proibição de entrada de água, dificuldade no uso de ingressos adquiridos antes da pandemia e falta de clareza na política de descontos.

Somam-se isso outras questões que não passam pelos órgãos competentes, mas que afetam igualmente a experiência do público:

  • A falta de clareza sobre os muitos cancelamentos de artistas nesta última edição
  • A oferta muito tardia de água gratuita, quando os vizinhos Lolla Chile e Argentina já o fazem há anos, e sem precisar de uma marca se promover às custas disso – a água de graça não é patrocinada nesses outros festivais
  • A criação do Lolla Comfort, área sub-vip que tomou espaço precioso do público na lateral direita do palco principal (o tão adorado morrinho do autódromo, que oferece uma boa visão dos shows). A mesma área também restringe banheiros dignos, com água corrente, só a quem paga cerca de 60% a mais, enquanto o próximo grande festival a ocupar o Autódromo, o The Town, já assegurou que esse tipo de banheiro será para todo o público

Com o acúmulo de casos de infrações trabalhistas, uma camada mais pesada se soma a essa relação que precisa ser repensada.

As denúncias contra o Lolla refletem um mal maior do brasil

Parece que chegamos com o Lolla em um mesmo ponto em que chegamos várias vezes nos últimos anos. O ponto do basta. Aquele ponto em que muita gente entendeu que não se pode mais tolerar certas práticas e comportamentos – racismo, homofobia, machismo, capacitismo, etarismo.

Porque assim como esses bastas anteriores vieram do entendimento da condição racista, homofóbica, etc da sociedade historicamente perpetuada, as reincidências do Lolla estão dentro de um contexto não só de práticas enraizadas no setor de entretenimento, como apontou o auditor fiscal citado neste texto, mas também de uma condição preocupante do país.

A mesma escravidão que deixou como legado o racismo também persiste em práticas trabalhistas nas empresas e está ganhando força no Brasil em anos recentes. De acordo com o MTE, o número de denúncias de trabalho análogo ao escravo dobrou no Brasil em 10 anos: passou de 857 em 2012 para 1.973 em 2022.

Só neste ano, mais de 500 pessoas foram resgatadas. E o caso do Lolla surge na mesma enxurrada de muitas denúncias nas últimas semanas: os cinco trabalhadores resgatados trabalhando no Lolla se somam a 200 resgatados em Goiás uma semana antes e a outros mais de 200 resgatados em Bento Gonçalves um mês antes.

Esqueça por um momento a Billie, o Kevin Parker ou o Drake

Não podemos deixar que o vínculo passional com os artistas que gostamos de ver ao vivo no Lolla e todos os bons momentos que esses shows nos proporcionam atrapalhem uma atitude racional nesse estado das coisas.

Mesmo com todo o privilégio que é pagar um salário mínimo ou mais para se divertir em um fim de semana, estamos a anos luz de distância dos privilégios dos artistas que prestigiamos ao vivo e nos devotamos tanto, sejam os que cumprem com suas funções ou os que pulam fora de última hora.

Não estamos no grupo de quem pode abrir mão de um pagamento de US$ 4 milhões

Entregando um show perfeito como fez Billie Eilish, fazendo um sacrifício em recuperação de um acidente como Kevin Parker ou desviando a rota do avião para fugir do show no Brasil como Drake, todos eles são milionários e ultracompensados pelo que fazem. Sempre estão no lucro, no fim saem sempre ilesos.

Por outro lado, como público, somos também trabalhadores. E como trabalhadores nem sempre somos devidamente compensados pela excelência do que entregamos ou pelos sacrifícios que fazemos, e se fugirmos dos nossos compromissos profissionais, seremos sumariamente punidos pelo maldito mercado.

Mesmo com todos os privilégios de frequentar um festival caro, quem vai ao Lolla ainda está muito mais próximo dos riscos que rondam trabalhadores informais e precarizados.

Em um país historicamente desigual, vulnerável a crises de todos os tipos e com uma economia cambaleante, não estamos no grupo de quem pode abrir mão de um trabalho que pagaria US$ 4 milhões, o cachê estimado do Drake, que cancelou a participação no festival na última hora.

Não estamos no grupo de quem cancela um compromisso profissional por uma lesão no trabalho e consegue assegurar esse mesmo trabalho para o ano seguinte, como é o caso do Blink-182.

Estamos, na verdade, a alguns passos (uns mais outros menos) de ser o próximo trabalhador que vai se ver obrigado a se submeter a condições injustas, irregulares ou até mesmo precárias, à mercê das crises e fragilidades do país e do mercado de trabalho.

Por todas essas razões, chegamos em um ponto que a nossa relação com o Lolla precisa mudar, indo da crítica mais dura e cobrança mais ferrenha com o cumprimento da lei até um eventual boicote se nada mudar.

O capítulo dos primeiros dez anos do festival no país tem um desfecho negativo hoje, e daqui em diante devemos pressionar e agir para que não sejamos corresponsáveis por rumos semelhantes ou piores nos próximos anos.

Imagem de destaque: Divulgação/Lollapalooza

2 Comments

  • Marcelo
    Posted 27 de março de 2023

    Seus texto está perfeito , muito bem colocado a questão da escravidão análoga , associando com os shows do final de semana. Já fui 2x no Lolla, e já estou numa idade onde quero conciliar a experiência com bem estar. Em se tratando de Festivais, e no Brasil, isso beira o impossível , infelizmente , portanto, vamos partir de um pressuposto “menos pior”. Quem vive experiência no RIR, percebe muito claramente essa diferença , e o The Town vai escancarar isso, o que torna meus dias de Lollapalooza boas lembranças do passado.

    • Priscila Brito
      Posted 28 de março de 2023

      Obrigada, Marcelo! É bem notável como os anos passam e o RIR segue sendo um parâmetro positivo pra comparar a organização de um festival sempre que vem uma crítica ao Lolla. Enquanto o RIR consegue manter um certo padrão, o Lolla vai ficando pra trás. O The Town realmente vai ser um marco nesse sentido.

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