Há um tipo de notícia que está se repetindo no Lollapalooza desde o ano passado: o fato de um determinado artista cancelar um show. Aconteceu com seis atrações da edição 2023, incluindo dois headliners, Blink-182 e Drake, e aconteceu outra vez com um headliner da edição 2024, o Paramore.
Também vimos Liam Payne e Queens of the Stone Age cancelarem o The Town em setembro de 2023, e Grimes e MUNA cancelarem o Primavera Sound em dezembro do mesmo ano.
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A multa contratual é uma coxinha?
Diante de tantos cancelamentos, principalmente aqueles que atingem o Lollapalooza, virou piada nas redes sociais a facilidade com que os artistas estrangeiros cancelam os shows, muitas vezes sem apresentar publicamente um motivo concreto. Seria a multa contratual uma coxinha? Um pastel? Um aperto de mão?
O fato é que muitas vezes nem multa há. Mas isso não quer dizer que não existam cláusulas contratuais que estipulem as condições em que cada uma das partes (artista ou evento) têm o direito de cancelar o acordo assinado.
O que acontece é que ambas as partes podem negociar cláusulas contratuais de cancelamento que sejam benéficas para si, criando condições que evitem multas em caso de cancelamento. E quanto maior for o artista no contexto da indústria, mais poder (e mais advogados melhores) ele tem para conseguir cancelar um show sem pagar multa.
As duas cláusulas para o artista cancelar um show
Fiz uma pesquisa para o Festivalando para entender como, no geral, podem ser definidos os termos contratuais de cancelamento de shows. Foquei intencionalmente em fontes internacionais, tendo em vista que os casos tratados aqui envolvem artistas, eventos e grandes produtores estrangeiros do entretenimento global.
Evidentemente, nada do que será explicado a seguir necessariamente tem ligação direta com os casos de cancelamento citados acima, os quais o público vem vivenciando de forma recorrente. Mas as informações ajudam a lançar um pouco de luz sobre o que acontece nos bastidores das negociações.
Em resumo, é possível agrupar as condições para cancelamento em duas categorias: as condições específicas de cancelamento em si e aquelas que se enquadram no conceito de força maior.
1. A cláusula de cancelamento
De acordo com a empresária artística Jeri Goldstein, artistas podem incluir em seus contratos cláusulas que os permitam cancelar um show em situações que envolvam oportunidades de avanço em sua carreira.
Isso pode incluir oportunidades de abrir os shows da turnê de um artista maior (ou mesmo um show único de um grande nome), o que daria uma grande exposição ao público; ou ainda uma grande oportunidade de aparição na mídia, como em programas de muita audiência, que também poderiam gerar exposição e até mesmo mais demanda pelo seu trabalho.
Definidas essas situações, são definidos também o prazo máximo que o artista tem para fazer o comunicado ao contratante para que se evitem multas, bem como eventuais consequências em caso de descumprimento desse prazo.
2. A cláusula de força maior e o grande pulo do gato
A outra categoria que determina as condições de cancelamento de um contrato é a de força maior, que pode ser usada tanto pelo artista quanto pelo organizador do evento.
Força maior é um conceito que descreve situações que não podem ser previstas ou que são difíceis de se prever, que não podem ser evitadas e que, quando ocorrem, afetam as partes envolvidas. No geral, abarca situações de ordem da natureza (desastres naturais como temporais, enchentes, erupções de vulcões, etc) ou de ordem humana (guerras, revoltas sociais, greves, etc).
Por essa qualidade imprevisível e incontrolável, é comum que um cancelamento por força maior isente de multa a parte que cancela um contrato.
O pulo do gato aqui é que, embora haja um entendimento geral e uma definição ampla do que é força maior, tanto o artista quanto o organizador do evento podem detalhar em um contrato quais outras situações se enquadrariam como força maior, de modo a criar vantagens e condições favoráveis para si em caso de cancelamento.
A principal das vantagens é eliminar a possibilidade de multa em uma variedade maior de situações. No máximo, quando o artista cancela por força maior, ele terá somente que devolver o adiantamento do cachê. Mas é possível também negociar outras condições a serem cumpridas em caso de cancelamento por força maior, como um eventual reagendamento do show ou até mesmo o auxílio do artista para encontrar um substituto para sua apresentação. Tudo é definido caso a caso.
O fato é que o detalhamento minucioso da força maior na hora de redigir o contrato é o grande recurso que os artistas têm a seu favor para cancelarem shows e saírem ilesos (ou para se darem bem quando o evento é cancelado, como você verá no tópico a seguir).
É por isso que vemos tantas justificativas do tipo “circunstâncias imprevistas” em pronunciamentos sobre cancelamentos de shows. Ao público não são detalhadas quais circunstâncias imprevistas são essas, mas certamente elas estão muito bem descritas na cláusula de força maior dos contratos assinados.
O detalhamento, contrato por contrato, artista por artista, das situações que se enquadram em força maior ocorre porque, em caso de disputa judicial, é comum que os tribunais considerem o que está expressamente redigido no contrato para julgar um eventual processo, conforme orienta a American Bar Association, entidade de classe de advogados nos EUA. Confira só o exemplo abaixo.
Lizzo, Kali Uchis, Ellie Goulding e o salto triplo do gato na força maior
A flexibilidade da cláusula de força maior pode ser tanta no momento da redação de um contrato que o artista pode até conseguir embolsar dinheiro mesmo quando o padrão da indústria seria devolver o cachê. O caso a seguir é um bom exemplo disso (apesar deste texto ter tratado até aqui de situações em que o artista cancela o show, a história abaixo é de cancelamento por parte dos organizadores do evento, mas é boa demais para não ser citada).
O escritório de advocacia Keystone Law, que atua na Europa, África, Ásia e Oceania, detalha muito bem o caso envolvendo Lizzo, Kali Uchis, Ellie Goulding e um festival que nunca aconteceu.
Todas as três estavam no line up do Virgin Fest Los Angeles. Ele ocorreria em junho de 2020 na Califórnia, mas obviamente foi cancelado por causa da pandemia de Covid-19.
Conforme previa o contrato, o festival já tinha depositado o cachê adiantado das artistas no início do ano. Quando, semanas depois, o governo da Califórnia proibiu eventos de massa no estado, seguindo o que aconteceu no resto do mundo, o festival foi cancelado.
Valendo-se da proibição de shows por causa da pandemia, os organizadores do festival recorreram à cláusula de força maior e solicitaram a devolução do cachê. A cláusula de força maior incluída no contrato com as atrações previa a devolução do cachê ao festival em caso de situações “além do controle razoável das partes do contrato que tornassem a apresentação do artista impossível, inviável ou perigosa”.
Todas as agências representantes dos artistas contratados devolveram o dinheiro, exceto a agência que representava Lizzo, Ellie Goulding e Kali Uchis.
O que tornou isso possível? Em vez da cláusula padrão usada pelo festival, que de certa forma era igualitária para artistas e evento, a agência das três cantoras redigiu uma cláusula de força maior que era mais favorável às artistas.
O texto acrescentava o seguinte à cláusula citada acima: “No entanto, se a artista estiver pronta, disposta e em condições de se apresentar, o festival irá pagar o adiantamento completo, a não ser que o cancelamento seja resultante de doença, morte ou ferimento da artista ou de um familiar imediato”.
Isso quer dizer que, pela cláusula redigida exclusivamente no contrato das três cantoras com o festival, a única situação em que elas deveriam devolver o adiantamento seria se uma delas ou de seus familiares diretos fosse acometido por doença, ferimento ou morte. Dito e feito, a agência se valeu da redação do contrato para não devolver o dinheiro, alegando que as cantoras estavam dispostas a se apresentar apesar do cancelamento por causa da situação de força maior, que era a pandemia.
O resultado: Lizzo embolsou US$ 5 milhões sem se apresentar. Ellie embolsou US$ 600 mil e Kali, US$ 400 mil. O caso foi levado à justiça pelo festival, e o tribunal decidiu em favor das artistas, fazendo valer a cláusula de força maior especificamente redigida para o contrato das cantoras.
Moral da história: nem coxinha nem dinheiro
Com bons advogados para redigir um contrato, uma carreira de prestígio e com uma pequena ajuda da definição flexível e ampla de força maior, é possível ao artista cancelar um show sem pagar um centavo sequer de multa. E em alguns casos muito peculiares, eles podem até sair embolsando o cachê mesmo sem se apresentar.
Leia também: A pandemia passou, mas o fantasma do cancelamento de festivais segue vivo
Crédito da imagem de destaque: Tijs van Leur via Unsplash.
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