A crise dos headliners de festivais é real. De uma sensação de déjà vu quando se compara vários cartazes aqui e lá fora a um inédito e impensável dia sem nenhuma atração internacional no Rock in Rio, passando pelo cancelamento de festivais inteiros, não há como ignorar que algo está acontecendo.

Como a maioria dos problemas do mundo real, este é um caso complexo que não surgiu da noite para o dia nem se explica com um único fator. Os efeitos dos grandes monopólios, o aumento de custos no pós-pandemia e os desafios desse cenário impostos à curadoria dos festivais são todos fatores que ajudam a explicar essa crise.

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1. A homogeneização gerada por monopólios

Há anos a Live Nation vem adotando a estratégia de aquisições de produtoras e casas de shows em diferentes partes do mundo para se consolidar no mercado de música ao vivo. A empresa dirá que é liderança no setor, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos diz que é monopólio.

Os efeitos desse cenário são vários, e não são bons para o restante do mercado. No que diz respeito ao assunto deste texto, o resultado é a repetição dos mesmos artistas nos vários festivais comandados pela empresa.

Considere o caso do Brasil e dos três maiores festivais do país, Rock in Rio, The Town e Lollapalooza. Post Malone foi headliner do Rock in Rio 2022 e do The Town 2023; Shawn Mendes foi headliner do Rock in Rio 2024 e seis meses depois será headliner do Lollapalooza 2025. Todos os eventos são produzidos pela Rock World, empresa originalmente brasileira, mas em última análise são da Live Nation, já que ela detém 60% de participação na companhia nacional.

2. A matemática dos custos e lucros das turnês

Após a pandemia, o custo de produção da música ao vivo subiu vertiginosamente. Ficou mais caro para as produtoras fazerem festivais e ficou mais caro para os artistas viajarem em turnês. Você já leu sobre essa história aqui no Festivalando em várias ocasiões nos últimos dois anos (como aqui, aqui e aqui).

Nesse cenário, os festivais acabam perdendo a capacidade de negociação com os maiores headliners e ficando com menos opções. Afinal, um artista tão grande a ponto de só caber na linha mais alta de um line up pode ter mais lucro fazendo sua própria turnê em vez de festivais.

Shows solo com mais potencial

O potencial de retorno financeiro da turnê solo pode ser melhor que o cachê a ser pago pelo festival. É possível adicionar datas extra caso haja demanda, e como estamos falando de artistas capazes de lotar estádios, também é possível criar uma variedade de faixas de preços de ingressos com base nos vários setores dos estádios.

Além disso, um festival talvez não consiga sequer pagar o que certos artistas valem hoje. Em um cenário de custos altíssimos para todos, qual festival tem condições atuais de pagar o que cobrariam Taylor Swift, Adele ou Beyoncé?

E por que artistas do porte delas aceitariam fazer um show reduzido em tempo e possivelmente em estrutura, e dividir o mesmo palco com outros artistas, quando elas sabem ser capazes de lotar estádios em múltiplas datas?

Residências mais rentáveis

Ou, no caso de Adele, por que optar por festivais quando ela consegue ter uma arena construída do zero única e exclusivamente para si mesma, como aconteceu com a série de shows em Munique?

O caso da cantora britânica também é um ótimo exemplo de outro recurso encontrado por alguns artistas com porte de headliner no atual cenário financeiro, que é a opção por residências de shows, uma fórmula que traz o lucro dos shows solo sem os custos dos deslocamentos de viagem de uma turnê tradicional.

A arena pop-up construída em Munique recebeu uma residência de dez shows da cantora paralelamente à sua residência de 100 shows em Las Vegas.

Turnês de reunião exclusivas

Considere ainda o caso do Oasis retornando aos palcos e declarando objetivamente que não vai se apresentar em festivais. Segundo estimativas da Billboard, a banda deve ganhar de oito a dez vezes mais com sua turnê em estádios do que se optasse por se apresentar como headliner em festivais.

O Linkin Park deve ter chegado a estimativas semelhantes, afinal está de retorno com uma turnê relâmpago sem nenhum show em festival.

Reflexos no Brasil

O Brasil viu os reflexos desse cenário recentemente com dois grandes nomes. Primeiro, Bruno Mars, que depois de dois shows no The Town em 2023 volta ao país um ano depois para 14 shows solo.

O segundo é o AC/DC. A banda vendeu em um único dia 1,5 milhão de ingressos para os shows de sua turnê europeia exclusivamente em estádios, sem nenhuma data em festivais. Como o AC/DC ou qualquer outra banda poderia ostentar esse feito se fosse uma em meio a várias outras atrações em um cartaz de festival?

Com a decisão de não tocar em festivais, o AC/DC recusou se apresentar em duas noites no Rock in Rio, o que gerou atraso em mais de um mês no início da venda de ingressos e no fechamento do line up, que por meses ficou sem atrações anunciadas nos dias 15 e 21.

O resultado foi uma noite do rock que passou longe de ser unanimidade (dia 15) e o Dia Brasil (dia 21), o primeiro dia da história do festival sem nenhuma atração internacional.

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3. Curadoria na encruzilhada

Com muitos artistas com porte de headliner cobrando mais caro dos festivais ou optando por fazer shows solo, a depender da safra de turnês e lançamentos, os festivais podem se ver com uma gama limitada de atrações principais que se encaixam em sua proposta musical.

O que acontece então? Os resultados variam, mas todos eles geram line ups que trazem consigo o risco de desagradar o fã de festival. Nos últimos meses, vimos três exemplos dessa situação nos festivais brasileiros.

Modo shuffle

Uma escolha pode ser ligar o modo shuffle e estampar no cartaz o que estiver à disposição. Parece ser o caso do Lollapalooza Brasil, que em 2025 virá com uma seleção de headliners que conversam individualmente com diferentes nichos de fãs de música, mas que no conjunto não correspondem ao que se poderia chamar de identidade do festival, identidade que inclusive pode estar sob discussão.

Se vira nos 30

Outra solução foi o “se vira nos 30” do Rock in Rio diante da negativa do AC/DC de fechar duas noites com o festival, conforme mencionado acima. A produção conseguiu manter uma noite do rock de pé, mas faltou atração internacional para a segunda data. A solução foi o Dia Brasil, somente com atrações nacionais.

Foram necessários mais de 50 artistas se apresentando no mesmo dia, uma campanha com música gravada pelas atrações no estilo “We Are the World” para arrecadar doações e uma série documental para defender o conceito.

Cancelamento

A outra opção pode ser radical. E aí temos o caso do Primavera Sound, que cancelou as edições que faria em São Paulo, Buenos Aires, Assunção e Montevidéu.

Em um painel realizado no dia 25 de setembro no International Festival Forum, em Londres, representantes do festival explicaram a sucessão de acontecimentos que culminaram na decisão de cancelar.

A escassez de headliners deixou o festival com poucas opções para negociar. Foi preciso também delimitar o tipo de headliner que faria sentido para o público da América do Sul dentro da proposta do Primavera Sound, reduzindo mais as opções.

De última hora, um dos headliners contratados pulou fora. Na busca por um substituto, com poucas opções e diante da constatação de que o cenário iria comprometer principalmente a edição da Argentina, o festival optou por cancelar todas as datas na região a fazer um evento que não “atendesse aos padrões do Primavera”.

O festival enviou um email à imprensa no dia 21 de setembro confirmando que retorna à América do Sul em 2025 e já prepara novidades para divulgar em breve.

Paralelamente, segue a crise dos headliners, ainda sem data para acabar.

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Crédito da imagem em destaque: Karina Carvalho via Unsplash

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