As cadeiras vermelhas na rua, as paredes revestidas com cartazes de bandas. Era fácil ter notado o Sidecar em um dos cantos da Plaça Reial, no bairro Gótico, em Barcelona, na minha primeira visita à cidade. Mas eu não notei. O labirinto de ruas estreitas e a arquitetura típica da região tomaram toda minha atenção naquele verão de 2018.
Fiquei instigada comigo mesma por ter deixado a casa de shows passar despercebida logo quando reconheci a famosa praça ao voltar ao mesmo ponto, quatro anos depois. Foi em uma das noites do Primavera a la Ciutat, a programação paralela de shows do Primavera Sound. São shows em diversas casas noturnas de Barcelona que preenchem a semana nos “dias de folga” do festival em si, cuja casa é o Parc del Fórum, no extremo norte da cidade.
Em 2022, o Primavera a la Ciutat ocupou 14 endereços diferentes com apresentações ao longo de cinco dias. Um festival dentro do festival. E um convite para passear por Barcelona com um outro olhar.
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Um festival que é também um guia local
Com o decorrer dos dias, fui entendendo o que o Primavera a la Ciutat e seus shows espalhados pela cidade fazem com você. Ele te faz ver Barcelona de uma perspectiva diferente. Seja apresentando um novo ângulo de lugares corriqueiros de turistas ou te levando a regiões que passam longe da check list de um roteiro de viagem.
Já um pouco tomada por esse espírito da programação de shows na cidade, naquela noite do Sidecar, ao ver as opções de rotas a pé saindo da Plaça de Catalunya até a Plaça Reial, eu decidi seguir pela Via Laietana em vez das famosas Ramblas, que já eram conhecidas da minha primeira viagem à cidade.
Percorrendo a via de cenários inéditos, com prédios neoclássicos, cafés e hotéis cinco estrelas, fui presenteada com a visão da Catedral de Barcelona poucos metros antes de adentrar de vez o bairro Gótico e a Plaça Reial. O Sidecar está lá, na praça lotada de gente, desde 1982, movimentando a cena musical da cidade. Há quem passe direto, há quem perceba e talvez sente-se em uma das mesas no exterior ou interior da casa.

Mas talvez só um show do Primavera a la Ciutat, como o da nova-iorquina Cassandra Jenkins, que escolhi ver, para te fazer descer as escadas rumo a um espaço diminuto no subsolo com capacidade para cerca de 200 pessoas, todas elas em silêncio ouvindo a cantora que canta em um sussurro, enquanto o barulho da noite preenche o espaço no nível da rua em toda a praça.
Do subsolo às ladeiras de Montjuic
O Poble Espanyol não é dos nomes mais recorrentes nas listas de atrações de Montjuic. A colina atrai visitantes pelo Castelo de Montjuic, a Fonte Mágica e os seus muitos mirantes, dentre outros pontos de interesse.
Mas o museu de arquitetura a céu aberto que concentra mais de uma centena de construções em tamanho real que reproduzem a diversidade da arquitetura da Espanha inteira é ponto obrigatório de quem usa como guia em Barcelona a programação do Primavera a la Ciutat.

A construção toda é de 1929, feita especialmente para a Exposição Universal daquele ano. No início deste século, em 2001, o Poble se tornou o berço do Primavera Sound, quando abrigou a primeira edição do festival. O crescimento do festival o levou a ter como casa hoje o Párc del Fórum, enquanto sua primeira sede é atualmente um dos cenários da programação paralela de shows na cidade.
Em uma viagem instantânea no tempo e no espaço, os shows do Primavera a la Ciutat ocupam a Plaza Mayor, réplica da praça de mesmo nome da pequena Riaza, cidade com pouco mais de dois mil habitantes localizada na província de Segovia, região central da Espanha.
As construções com características da arquitetura do século XVIII emolduram os shows da música global do século XXI, sejam os brasileiros do Teto Preto, a nipo-britânica Rina Sawayama ou os franceses do Phoenix.

Tem ainda um easter egg nesse cenário: uma porta preta que quase não se nota em uma das extremidades da Plaza Mayor. Quase como uma passagem para uma outra dimensão nesse jogo de passado e presente. É uma das portas que leva à Sala Upload, adjacente ao Poble. Fundada em 2015, é outra das casas noturnas da programação do Primava a la Ciutat e se notabilizou por abrigar música independente, urbana e moderna.
O teleférico de Montjuic não te leva lá. Um caminho mais cenográfico pode ser pela Plaça d’Espanya e a dupla imponente de Torres Venezianas em direção à Fonte de Montjuic.
Cortar caminho pelo bairro de Hostafrancs, como eu fiz, pode te abrir as portas para uma Barcelona cotidiana, que segue a vida normal com farmácias, lojas de bairro, o sino que toca de tempos em tempos na Parròquia del Sant Àngel Custodi e crianças vizinhas brincando na praça do bairro em um fim de tarde.
Flashes do passado
Não muito longe dali, na encruzilhada da Plaça d’Espanya, e na direção oposta a Hostafrancs, a avenida del Paral·lel corta Barcelona até desembocar na área portuária. Na porção final, em um raio de não mais que 300 metros, o Primavera a la Ciutat transforma o cenário nas noites ensolaradas de junho.
O perímetro pequeno da avenida larga típica de uma grande metrópole fica preenchido por filas de gente dobrando os quarteirões, cada uma levando a um destino diferente: Apolo, La 2, Laut e Paral.lel 62.

São quatro casas noturnas da programação paralela, a poucos passos de distância umas das outras, cujas lotações diminutas são disputadas para ver grandes atrações do line up, como Jorja Smith e Interpol, em espaços intimistas que um grande festival não permite.
É como se em dias de Primavera a la Ciutat o festival fizesse reviver, à sua maneira, cenas que foram típicas da região em grande parte do século XX.
Naquele período, a avenida del Paral·lel ficou marcada como um polo de casas de espetáculos, musicais e teatros, comparável a Montmartre, em Paris. É um pedaço da história recente de Barcelona trazida à tona pela curiosidade que o festival despertou em mim ao me fazer circular pela cidade.
Dos paralelos aos meridianos
A noite no Razzmatazz me fez conhecer outros capítulos dessa história musical escrita nas ruas de Barcelona. A casa noturna contemporânea do Primavera Sound foi fundada no ano 2000. Suas cinco salas foram testemunhas da cena de rock internacional que floresceu nesse início de século e se tornaram aos poucos parte da programação do Primavera a la Ciutat.
A propósito, é uma das casas que recebeu alguns dos nomes de maior prestígio da programação de 2022. De Beck a Megan Thee Stallion, explodindo o espaço apertado com o poder de suas performances ao vivo.

Quando nasceu, o Razzmatazz completou uma vizinhança devotada à música que se firmava a poucas quadras dali, na avenida Meridiana, desde o fim dos anos 1940, quando foi inaugurado o Museu da Música e, nos anos 1990, a sala de concertos L’Auditori. A Vol, outra casa noturna da programação do festival, também já aguardava por ali, nos arredores, desde 1992.
Se você quiser continuar o passeio a partir daqui, acione o seu olhar curioso e explorador e siga em direção às outras paradas do Primavera a la Ciutat: Red58, La Nau, La Textil e Bóveda.
Crédito da imagem principal: Clara Orozco