Desigualdade de gênero é uma fábula pra muita gente – mais ou menos os mesmos que acham que não existe racismo e que se vive hoje uma ~ditadura gay~. Estatísticas que mostram a sub-representação das mulheres na política e em cargos de chefia; a renda menor em relação aos homens; a condição de vítima (e, pior, de culpada) na maior parte dos episódios de violência conjugal e sexual – nem a precisão dos números sobre esferas essenciais da vida e do cotidiano (trabalho, economia, política, vida doméstica) convence quem acha que homens e mulheres são iguais só porque ambos podem hoje votar e sair de casa para trabalhar.

Mas quando essa fórmula do desequilíbrio e da sub-representação se reproduz até nas estruturas menos “importantes” e menos óbvias talvez seja o caso de repensar e perceber como o problema é tão crônico que se infiltra até onde menos se espera ou se imagina – e isso talvez seja extremamente perigoso, pois se as desigualdades continuam a se perpetuar nas áreas onde têm sido feitos esforços ao longo de décadas, o que dizer daquelas que ficam fora dos holofotes e da discussão?

Nesta semana, eu e Gra precisamos de apenas dois posts para conseguir destacar as mulheres – seja em carreira solo ou integrando bandas – que se apresentam em festivais neste ano. Não precisava mais que isso, já que elas são poucas, pouquíssimas na proporção geral da programação de todo e qualquer festival. A conclusão não é só nossa. Nas últimas semanas, na Inglaterra, onde festivais são praticamente uma instituição e existem às centenas, fãs de desses festivais criaram, diagamos, um ~meme sério~ para mostrar com o lineup dos eventos no país este ano são extremamente desiguais na distribuição homens/mulheres. A brincadeira era a seguinte: pegue o cartaz de um festival e apague os nomes de bandas que só têm homens na formação e os os homens que se apresentam solo também. Deixe só as cantoras solo ou as bandas com alguma moça no grupo. Veja como ficariam os festivais de Reading e Leeds, T in the Park e Download caso só as mulheres ou bandas com mulheres na formação fossem se apresentar:

Reading e Leeds 2015

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T in the Park 2015

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Download 2015

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Um dos maiores, senão o maior festival da atualidade, o Coachella, nos Estados Unidos, também Um levantamento muito completo feito pelo BuzzFeed de todas as edições do festival até 2013 (treze no total) revelou que, na média, apenas 16% dos artistas que tocaram no festival eram mulheres. Nesse tempo todo, só duas mulheres foram headliners, Björk e Beth Gibbons, à frente do Portishead. Destaco aqui uma parte do infográfico feito pelo site, mas você pode ver o artigo completo aqui.

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A disparidade também foi muito bem mensurada pela jornalista inglesa Laurren Medford-Stewart em um levantamento feito no ano passado, logo após o fim da temporada de verão dos grandes festivais. No infográfico “Where Are All The Female Bands?” (veja no fim do texto), ela mostra que as mulheres não chegam a representar nem um quinto do total geral de atrações nos principais festivais europeus. Como referência, ela analisou o lineup de três dos maiores festivais do continente: Glastonbury (Inglaterra), Roskilde (Dinamarca, onde eu e Gra estivemos) e Rock Werchter (Bélgica). Respectivamente, as atrações femininas representavam 17%, 12% e 11% do total. As proporções ficam ainda menores quando se foca apenas nos headliners. Respectivamente, as mulheres que encabeçavam a programação de cada um desses festivais era de 15%, 6% e (pausa dramática) 0%. (Por curiosidade, fiz as contas considerando só os dois principais festivais no Brasil hoje, Lollapalooza e Rock in Rio, e cheguei a 17% de mulheres no Lolla deste ano e 13% no Rock in Rio 2013).

Esperta, Laurren se perguntou se isso não seria uma mera questão de diferença de popularidade. Pois ela notou que, dentre os headliners, apesar de a maioria dos artistas homens terem mais fãs em redes sociais, por exemplo, houve casos em que as mulheres arrastaram multidões maiores nos festivais. Caso de Dolly Parton, que atraiu mais de 100 mil pessoas em seu show em Glastonbury, mais que o Metallica, anunciados com toda pompa como os headliners do festival no ano passado. Um ponto que Laurren não aborda, mas ajudar a completar a história, é que em 2014 duas das cinco turnês mais rentáveis foram de mulheres (Katy Perry e Beyoncé) e metade dos 10 artistas mais ricos da música no Reino Unido eram mulheres. Se elas são tão (ou às vezes mais) populares e rentáveis quanto eles, porque têm muito menos espaço?, pergunta-se Laurren. Where are all the female bands?

Por sorte, um desses três festivais está ao menos disposto a discutir a questão, mostrando que, sim, igualdade de gênero no lineup dos festivais importa. Não por acaso, o festival em questão é o Roskilde, na Dinamarca, que faz parte daquele quase inacreditável lugar na Terra chamado Escandinávia, onde o modelo ocidental de civilização parece ter dado menos errado.

Segundo o Global Gender Gap Report, relatório do Fórum Econômico Mundial, que anualmente mede as disparidades de gênero no mundo, nenhum país ainda conseguiu atingir a igualdade plena entre homens e mulheres, mas a Dinamarca e seus coleguinhas escandinavos são os que mais se aproximam dessa condição. De 142 países pesquisados pelo relatório em 2014, a Dinamarca é a quinta nação mais próxima de uma situação de igualdade de gênero. Antes, vêm Islândia (1º), Finlândia (2º), Noruega (3º) e Suécia (4º) – o Brasil está exatamente no meio do caminho, na encruzilhada, em 71º.

O fato é que a Dinamarca despertou cedo para as disparidades de gênero e logo tratou de começar a corrigi-las: mulheres podem votar desde 1919. O aborto é legalizado desde 1973, mesmo ano em que foi promulgada lei que institui o pagamento igualitário no mercado de trabalho. Há também uma Lei Geral de Igualdade de Gênero desde 2002. Com tantas conquistas em nível macro já concretizadas, é natural que o foco se volte para o nível micro e é aí que entram os festivais.

Até onde eu consegui pesquisar, pelo menos desde a década passada há um debate na cena cultural do país sobre como os dois maiores festivais dinamarqueses, Roskilde e Copenhague Jazz Festival, pouco têm mulheres em suas programações, o que é caracterizado como nada menos que um vexame para a cultura do país. Para eles, igualdade de gênero é um princípio que precisa ser reproduzido em todos os níveis.

Roskilde e a “gender quota”
O Roskilde, como disse, se abriu para esta discussão. Uma coisa que me chamou bastante atenção antes mesmo de viajar para o festival foi um vídeo feito pela produção no qual o responsável pela área de Música e Criação do festival, Anders Wahren, fala sobre como é feito um lineup de festival. Em determinado momento (a partir de 3:25), ele comenta que a produção está atenta à necessidade de incluir mulheres na programação e sabe do impacto positivo que isso pode ter na audiência.

A edição 2015 sugere um panorama um pouco melhor do que aquele de 2014, pelo menos por enquanto. 54 das 169 atrações já foram anunciadas e 30% delas são mulheres. Dentre os headliners, dos quatro confirmados temos Florence Welch e sua the Machine.

Topless, xixi e liberdade
À parte as disparidades do lineup, é justo registrar aqui como estar em Roskilde me ajudou a ter boas amostras dessa igualdade de gênero de que tanto falam na Dinamarca. Primeiro, o festival é um evento sem fins lucrativos desde sua origem, nos anos 1970, e, por isso, tem na base de sua organização e funcionamento um batalhão de voluntários para dar conta de um evento para mais de cem mil pessoas. É um projeto tão bem sucedido que virou estudo de caso em universidades. São mais de 30 mil voluntários por edição e a distribuição por gênero é obrigatoriamente 50/50%.

Segundo, eu contei neste texto que fiz para o Papo de Homem que uma das coisas que mais me marcou na viagem de dois meses que fiz foi ter visto meninos e meninas abaixando as calças um do lado do outro, e na frente de outras pessoas, no mesmo cantinho do acampamento do festival, para fazer xixi. Vi a mesma cena se repetir mais de uma vez.

Conforme vi uma dinamarquesa comentar em um fórum na internet, o país atingiu uma espécie de estágio de pós-sexualização, no qual o corpo deixou de ser um objeto erótico em toda e qualquer situação e só é visto assim em contextos muito íntimos. Publicamente, é apenas uma ferramenta prática com suas funcionalidades e necessidades fisiológicas e isso é libertador para homens e mulheres.

É por isso que andar de shortinho ou de top de biquíni, como nós fizemos, numa multidão de caras bêbados de cerveja, não foi motivo para nós perdermos nosso sossego ou termos nossa integridade ameaçada. Éramos apenas pessoas aleatórias na multidão. Assim como eram também algumas meninas que vimos fazendo topless, em meio a outros caras, à beira de um lago na área do festival. É por isso também que todos os anos meninos e meninas que querem ir de graça ao festival correm juntos pelados para concorrer a um ingresso na tradicional Naked Run. Existem caras que chegam querendo ficar com você? Sim. Existem olhares de cobiça? Sim. Só que quando a gente deixa de ser um mero corpo erotizado à disposição da vontade alheia a atração sexual que naturalmente se manifesta entre seres humanos não vem acompanhada de agressividade, desrespeito ou invasão e um não é um não, um sim é sim.

Enfim, os dinamarqueses já avançaram muito no tratamento das questões homem/mulher. Que eles importem todo esse know-how para o Roskilde Festival e inspirem outros festivais a igualmente se abrirem para o debate porque igualdade de gênero em festivais também importa, sim, senhor@s.

Laurren Medford-Stewart
Laurren Medford-Stewart

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