No início deste ano, um festival de EDM da Flórida, o Resonate Suwannee, reclamou publicamente no Instagram que não podia divulgar o nome de uma atração por causa de “um certo festival da Califórnia”. O festival em questão era o Coachella e o motivo do impedimento era a chamada radius clause.
Em bom português, a cláusula de raio, também denominada cláusula de exclusividade territorial, é um traço tão notório do Coachella nos bastidores quanto é o hype que o festival causa publicamente. O Lolla-matriz, em Chicago, também já se valeu desse recurso, que é bom para quem usa e desleal para a concorrência.
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O que é a radius clause ou cláusula de raio
A cláusula de raio é um recurso contratual para garantir exclusividade territorial na operação de um negócio em um determinado raio de distância, daí a palavra “raio” no nome. A ideia é delimitar uma área geográfica, e eventualmente também um período de tempo, em que um negócio terá atuação exclusiva, empurrando os concorrentes para longe.
A princípio, ela é usada em qualquer setor que envolva atividades em regiões geográficas. Por exemplo, no Brasil, são comuns menções a esse tipo de cláusula em contratos ligados à locação de lojas em shoppings ou aberturas de franquias.
Nos Estados Unidos, por sua vez, a radius clause popularizou-se em meio ao público geral por ser usada no mercado de shows e festivais. Os promotores de eventos adicionam a cláusula de raio no contrato de um artista para garantir que ele não fará show em determinadas cidades ou datas próximas ao evento para o qual foi contratado. Mais precisamente, o Coachella foi quem mais se notabilizou por essa prática, devido a uma cláusula de raio agressiva, considerada concorrência desleal por algumas empresas. O Lollapalooza Chicago também já se valeu do recurso.
Como o Coachella usa a cláusula de raio
Assim como qualquer evento, a intenção principal do Coachella ao incluir uma cláusula de raio no contrato feito com os artistas do line up é impedir que eles se apresentem em outros eventos em cidades, estados ou datas próximas ao Coachella, garantindo assim a exclusividade daquele artista.
Em última análise, é uma forma de assegurar a soberania na venda de ingressos e deixar a concorrência de mãos atadas, sem poder contratar artistas do line up do festival para seus eventos. Inclusive, essa é a principal crítica feita ao Coachella por outros promotores de eventos dos EUA. É como se, todos os anos, o festival de Indio controlasse o mercado de música ao vivo por um determinado período.
Os detalhes da radius clause do Coachella
O incômodo gerado pela cláusula contratual do Coachella chegou uma vez aos tribunais, em 2018, quando o festival Soul’d Out Music Festival, de Portland, processou o evento californiano pelas práticas competitivas agressivas e desleais.
Como alguns documentos do processo se tornaram públicos, pela primeira vez foi possível saber detalhes da cláusula de raio usada pelo Coachella. Não se sabe de 2018 para cá houve mudanças, afinal os contratos são confidenciais, mas a ação na Justiça revelou que essas eram até então as condições impostas pelo Coachella aos artistas do line up:
- O artista é proibido de se apresentar em qualquer festival nos EUA ou fazer qualquer show solo no Sul da Califórnia entre 15 de dezembro e 1º de maio (não coincidentemente, esse período abarca o mês de divulgação do line up do Coachella, janeiro, seguido pela venda de ingressos e a realização do festival em si, em abril);
- O artista é proibido de divulgar qualquer show nos estados da Califórnia, Arizona, Oregon ou Washington enquanto o line up do Coachella não for anunciado;
- O artista é proibido de divulgar qualquer show em festivais concorrentes na Califórnia, nos estados da divisa, em Washington e qualquer show solo no sul da Califórnia até o dia 8 de maio;
- O artista é proibido de divulgar shows em qualquer festival do resto dos EUA ou em Las Vegas (exceto em cassinos da cidade) enquanto não sair o line do Coachella (aqui se encaixa o caso do festival da Flórida citado no início do texto: como o line up do Coachella ainda não tinha sido divulgado, o Resonate Suwannee não podia ainda anunciar um artista que tinha assinado com o festival californiano).
A cláusula de raio do Lolla Chicago
O Lollapalooza Chicago também foi alvo de processo pelas mesmas razões, em 2010. Pelos documentos da ação na Justiça ficou-se sabendo que, à época, os artistas do festival eram proibidos de se apresentar em um raio de até 480 km de Chicago (aproximadamente a distância entre Rio e São Paulo) em um período de seis meses antes e três meses depois do festival.
O processo foi arquivado dois anos depois, em 2012, sem nenhuma providência. Também não se falou mais na cláusula de exclusividade em associação ao festival. Mas o fato é que o Lollapalooza nunca chegou, nem na década passada nem nos dias de hoje, a atingir a mesma proporção de estardalhaço do Coachella, portanto atrai atenção (positiva ou negativa) proporcionalmente menor.
Segue a briga por exclusividade, mas é o bastante?
Já o gigante da Califórnia, por tudo o que representa, é visado para o bem e para o mal. E por isso mesmo o processo contra o Coachella ainda corre na Justiça, seis anos depois. Até aqui, houve recursos de ambas as partes, com decisões favoráveis para os dois lados em diferentes momentos.
A cláusula de raio do Coachella também segue repercutindo fora dos tribunais, como o caso do início deste ano do festival Resonate Suwannee, mencionado neste texto.
Mas ter exclusividade dos artistas e impor regras para controlar a divulgação de shows em outras praças é uma arma eficiente até que ponto?
Neste ano, o Coachella enfrentou a venda de ingressos mais lenta da última década. Enquanto em anos anteriores o festival esgotou ingressos em questão de horas ou mesmo de minutos (em 2015 foram só 40 minutos), em 2024 as entradas do primeiro fim de semana levaram um mês para esgotar. E faltando poucos dias para o festival, os ingressos do segundo fim de semana ainda estão disponíveis e não saíram do primeiro lote.
Do preço dos ingressos aos nomes do line up, algo não convenceu o público de que o festival não é tão irresistível quanto antes. Os artistas são obrigados a seguir uma cláusula de exclusividade, mas são os artistas que o público quer ver? Ou a brincadeira de exigir exclusividade das atrações saiu muito cara, refletiu nos preços dos ingressos e o público achou que não valia a pena pagar?
Internamente o Coachella certamente deve saber qual é a resposta, mas o fato é que menos gente comprou ingressos, o festival faturou menos com bilheteria e os promotores da concorrência foram mais uma vez prejudicados pela cláusula de exclusividade. Alguém saiu ganhando?
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Crédito da imagem principal: Andrew Ruiz via Unsplash
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