O dia de hoje é um marco de resistência para todas aquelas pessoas que se sentem confortáveis com a categoria “mulheres”. Foi por causa desta data, da minha trajetória e do que eu venho pesquisando nesses últimos dois anos no meu mestrado que eu resolvi fazer um post um pouco atípico. Na verdade, não é tão atípico assim, visto que gênero e música é um assunto que sempre pinta aqui no site, seja para falar de iniciativas de festivais, projetos comprometidos com a equidade de gênero, iniciativas inspiradoras para mulheres na música e pesquisas que denunciam desigualdades de oportunidades entre os gêneros.

Eu poderia chamar esse post de manifesto, mas não sei se vem ao caso. Poderia ser um desabafo, também. Mas a minha proposta com ele, na verdade, é sugerir um pacto. Um pacto não só praticado aqui no Festivalando, mas também em todos os veículos midiáticos que cobrem música, que geram conteúdos sobre música e artistas. Bem como os festivais, gravadoras e pessoas comuns – todo mundo que vem a público, de alguma maneira, falar sobre musicistas e músicos.

Antes de explicar que pacto/proposta é esta, a gente precisa falar de algumas outras coisas, nem que seja de forma breve e limitada aos caracteres aqui permitidos.

Vamos falar de nossas referências musicais (ou daquilo que nos sugerem considerar como referência)?

gênero e música
Gabi Gomes – Nüclear Fröst/ Divulgação

Pare e pense sobre as suas referências musicais. Quem são elas? São artistas brancos, heterossexuais, são homens cisgênero (que nasceram com uma anatomia correspondente àquilo que mostram na aparência e à ideia de um determinado gênero, no caso, homem)? Ou são mulheres? Há mulheres cis e trans? Há negras e negros, há homossexuais?Há artistas gordas e gordos? É claro que essa reflexão sobre as nossas referências é condicionada pela experiência dentro de cada gênero ou subgênero musical.

No meu caso, que ouço basicamente metal, as minhas referências são constituídas, em grande parte, de homens heterossexuais, cisgênero, bem dentro de um padrão de masculinidade típico do metal. Daí,querendo entender os motivos para isso acontecer, chega uma hora em que não mais podemos nos contentar com aquela velha história de que “sempre houve menos mulheres musicistas neste espaço”.

Não tem mulher fazendo música?

De algumas décadas para cá, esta questão tem mudado bastante, com várias mulheres montando suas bandas e tendo a visibilidade de seus trabalhos por meios alternativos. Cito como referência o incansável e engajado trabalho da União das Mulheres Underground, que todo dia nos mostra uma banda nova, formada por mulheres diversas – negras, lésbicas, cis, trans, nos mais variados subgêneros da música pesada.

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Kim Schifino- Matt and Kim band. Ph: Christian Bertrand via Shutterstock

Então, será que essa presença quase imperceptível de mulheres nas posições de referência teria causas tão simples assim, como aquele velho argumento de que “não há mulher tocando”? Só no Brasil, os anos 80 nos mostraram o surgimento de algumas bandas importantes de mulheres. Mas elas foram evidenciadas como referência para o metal, de uma forma geral, de forma repetida e ao longo dos anos? Não muito.

Então, a questão não é simples. A ausência de musicistas em espaços de referência de qualidade musical tem explicações mais profundas. A presença recente delas na mídia, de maneira mais evidente, também não garante que elas se tornem referência. E a explicação mais profunda sobre isso tem a ver com uma coisa chamada Cânone, com espaços de canonização e critérios de canonização.

O Cânone da música, a mídia e o que se fala (ou não se fala) sobre música

O Cânone é uma espécie de forma de bolo. A forma de bolo é sempre a vontade de uma dimensão de bolo ideal, e tem o papel de proporcionar que os bolos saiam mais ou menos com o mesmo tamanho e padrão. Ainda assim, a fôrma de bolo não pode garantir sempre o mesmo tamanho e dimensão. Há bolos feitos com menos fermento que ficarão mais baixinhos.

Há bolos que extrapolam a fôrma e vazam por todo lado, fazendo aquela zona. As regras de instituição do cânone e a forma como as mídias o seguem é bem mais forte do que a fôrma, porque o “bolo” fora do padrão ( nesse caso, colocado discursivamente fora do padrão – ou seja, não “é” fora do padrão, mas alguém diz que “é”) é simplesmente excluído da vitrine. Ou então, incluído na vitrine com outras funções.

Mas o que este cânone tem a ver com gênero e música?

Uma autora chamada Marcia Citron (1993) diz que o Cânone é uma forma de controlar padrões de qualidade. São modelos que refletem uma cultura de uma sociedade e o que esta valoriza. Ele diz o que é melhor para se produzir, no presente e no futuro. Agora, um cânone da música não é tão fácil assim de ser identificado. Na música clássica é mais fácil, porque os conservatórios têm livros e cursos totalmente montados em cima de referências. Eu cheguei a procurar algo assim no metal. Achei no Robert Walser – Running With The Devil (1993, p. 173). E aí, vi que exisita apenas uma mulher dentro da lista proposta como o Cânone do metal. Na música clássica não é tão diferente, como o próprio livro de Citron mostra.

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Lita Ford/ Divulgação

Mas que cânone é esse? Que mão invisível controla isso? Bom, todo e qualquer cânone é construído por nós, enquanto sociedade, por critérios que nós mesmos inventamos e valorizamos na mídia e em nossas conversas do dia a dia. Não existe mão invisível nem situações canônicas que não possam ser mudadas. Marcia Citron fala de dois critérios muito presentes em todo o ocidente para definir o que entra no cânone ou não: criatividade e profissionalismo.

E claro, os discursos que a mídia, festivais e gravadoras produzem nesse sentido vão influenciar um monte naquilo que as pessoas chamam de referência, de exemplos de excelência musical. É aí que entra a minha reflexão sobre o que estamos fazendo com tudo isso.

O que falam/ falamos sobre artistas coincidentemente menos presentes em nosso referencial de qualidade musical?

É mesmo bem claro que a gente adora falar o quanto fulano x é profissional, fulano y é criativo. Isso é recorrente em muitas falas de críticos de música. No caso da minha pesquisa com uma revista de metal, isso foi muito recorrente nas entrevistas analisadas realizadas com homens. E aí, bingo! Os homens estão sempre presentes, de maneira bem evidente, em espaços canônicos. Por exemplo, aquelas listas de melhores cds, melhores instrumentistas etc. Eles “ganham” disparado.

Apesar da crescente inclusão de mulheres (no caso da minha pesquisa, brancas, magras, de padrão europeu) em revistas sobre música, isso não quer dizer que todas elas recebam atribuições que as coloquem mais perto dos tais padrões de cânone. Não é sempre que terão sua criatividade ou profissionalismo destacados. Elas são tipo o “bolo dito não padrão” colocado na vitrine com outras funções.

Claro que não é igual em todo o tipo de revista, em todo tipo de gênero musical. Mas no metal, as escolhas de vocabulário para qualificar as mulheres frequentemente não remetem aos critérios canônicos. Até quando os que escrevem ~acham~ que estão elogiando as mulheres, as favorecendo de alguma maneira, na verdade, as distanciam do cânone. Não é raro o uso dos adjetivos “bela”, “musa” ou de expressões como “mulheres embelezam a cena”, “são lindas”, e por aí vai.

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Aí eu te pergunto: existe critério de beleza física para definir qualidade musical? Ou seja, ao atribuir isso às mulheres, onde é que a mídia quer levá-las? Para um espaço de referência de qualidade musical não parece ser. O que parece é que querem levá-las a um concurso de miss musicista, ou para a capa da Playboy. E nada mais.

Água mole, pedra dura…

Certamente, existem exemplos em que a criatividade e profissionalismo de mulheres poderão ser citados. No entanto, estes são bem menos frequentes do que a valorização de atributos físicos das mulheres. Referências sobre a beleza são repetidas por todo lado, a toda hora. E isso não é legal. Em comparação, o que se fala frequentemente sobre os homens é que são criativos, são “deuses eternos do metal”, são competentes e totalmente engajados em seus trabalhos.

Perguntas de jornalistas também podem ser bem perigosas para muitas musicistas. Por exemplo, é preciso entender bem quando um jornalista prefere focar na procriação e não na criação – é bem típico o assunto de maternidade ganhar relevância em vez de assuntos de criatividade. Outro perigo constante são os julgamentos! Esses existem aos montes. Um exemplo clássico é aquela entrevista em que o cara perguntava para a Lady Gaga se ela não tinha medo de desviar a atenção do seu trabalho para as suas roupas tão provocantes. Aí ela dá aquela resposta maravilhosa, na lata:

Tudo isso só mostra que o que falamos sobre música não é neutro, e que as relações entre gênero e música se mostram a todo momento naquilo que falamos, mostramos. Nossos discursos são, em grande parte, atravessados também por preconceitos de gênero. E a repetição dos discursos com esse tipo de abordagem injusta e preconceituosa poderá levar a caminhos onde mulheres serão apenas “enfeites”, ao invés de protagonistas de várias cenas musicais, de inúmeros produtos musicais. Resumido: repetir que as mulheres são musas, bonitas, e que os homens são criativos e comepetentes, tem o potencial de gerar inequidade de oportunidade para ambxs no cenário musical.

Não é só no enaltecimento da beleza física que erramos

Além da ênfase nos atributos físicos de musicistas, ainda há muita coisa para ser discutida. Há avalições de tenacidade e engajamento com relação à produção musical, há avaliações negativas e bem pessoais sobre o trabalho delas, um grande interesse em assuntos da vida privada e relações afetivas das mesmas, ao invés de se manter o foco em suas criações.

Infelizmente, não tenho como trazer todos os meus achados de pesquisa (200 páginas de labuta) nesse espaço. Lembrando, também, que apenas analisei os discursos de uma revista de metal, ao longo dos anos de publicações da mesma. Espero logo poder conhecer mais trabalhos desse tipo nos mais diversos gêneros musicais.

Enfim, diante de tudo isso que acontece, o que podemos fazer para melhorar enquanto pessoas e profissionais do meio, então?

Bora fazer um pacto sobre gênero e música? Com o ~supremo~, com a sociedade, com a mídia toda?

Independente do tempo em que alguém atua como jornalista, editor, redator de redes sociais de gravadoras, blogueiro de música, Youtuber etc – nós precisamos estudar mais sobre relações de gênero! Leia, leia muito, leia qualquer coisa sobre o assunto e comece a se questionar. Não estou falando que aquilo que digo é a verdade. Você inclusive deve pesquisar sobre o que digo aqui para formar os seus próprios argumentos. O que é inaceitável é a falta de leitura e pesquisa, culminando em repetição do senso comum. A primeira parte do pacto, então, é se informar sobre questões de gênero e refletir sobre elas.

A outra parte do pacto é a prática. A prática midiática precisa ser mudada. Questione se realmente é necessário enaltecer padrões de beleza de mulheres musicistas. Para que serve isso? O produto principal que essas mulheres querem mostrar são suas músicas, sua criatividade e produção enquanto artistas.

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Pense bem sobre que informações podem promover a equidade de gênero, ou seja, julgamentos mais justos para todxs, com promoção da igualdade de direitos e oportunidades. E tente pensar isso interseccionalmente, ou seja, lembre que não existe apenas um tipo de mulher na música – há mulheres negras, mulheres trans, mulheres lésbicas, mulheres hetero, mulheres gordas e por aí vai. Todas elas querem ter seus trabalhos reconhecidos.

Lembre-se de que, quando enfatizamos a beleza física de quem faz a música, estamos deixando para trás tudo o que diz respeito ao profissionalismo e criatividade. Como podem as mulheres serem referência de qualidade musical se somente a beleza física delas é que importa na hora de estampar uma capa de revista sobre música?

Só mais uma coisinha…

Ah! Lembrando que se musicistas ou músicos querem se vestir de maneira sexy ou não, isso não é da nossa conta, não é do interesse e análise musical.

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Vamos juntxs virar o jogo?

Algumas das leituras que fiz antes de escrever este texto:

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
CITRON, Marcia J. Gender and the musical canon. University of Illinois Press, 1993.
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London, New York: routledge, 2003.
HILL, Rosemary Lucy. Gender, metal and the media: women fans and the gendered experience of music. Routledge, UK. 2016
WALSER, Robert. Running with the devil: Power, gender, and madness in heavy metal music. Wesleyan University Press, 1993.

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